Limites e Possibilidades
Em primeiro plano, para desmistificar e identificar os limites da autonomia da vontade frente à incapacidade civil e à morte, é necessário promover um debate acerca do conflito existente entre o direito à vida e a liberdade — ambos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal. Nesse contexto, o problema central pode ser sintetizado na seguinte pergunta: deve ser seguida uma diretiva antecipada da vontade que entre em conflito com o direito à vida? Assim, o tema deve ser abordado sob diferentes perspectivas, a fim de elucidar e enriquecer o debate.
Diante disso, torna-se necessário analisar as hipóteses em que uma DAV stricto sensu manifeste desinteresse pela adoção de procedimentos médicos úteis e necessários à preservação da vida. Cabe, portanto, apresentar e discutir os diferentes pontos de vista existentes, considerando que não há consenso na doutrina sobre o tema.
Sob esse viés, é imperioso ressaltar que a Diretiva Antecipada da Vontade (DAV), em sentido estrito, abrange o testamento vital — manifestação da pessoa quanto aos procedimentos médicos que deseja ou não deseja receber. A DAV proporciona ao indivíduo a possibilidade de decidir, antecipadamente, sobre os cuidados médicos a serem adotados na hipótese de doenças gravíssimas que comprometam sua lucidez. A ideia central da DAV é permitir que o paciente expresse sua vontade de não ser submetido à distanásia, ou seja, ao prolongamento artificial e excessivo do processo de morte.
Nesse contexto, parte da doutrina defende que o direito à vida não se flexibiliza, nem mesmo diante do direito à liberdade. Conforme o entendimento do jurista Flávio Tartuce, em situações que envolvam um procedimento médico capaz de evitar a morte do paciente, e havendo uma DAV contrária à sua realização, o procedimento deve ser realizado. Segundo o autor, a vida merece maior proteção do que a liberdade individual.
Dessa forma, quando houver conflito entre o direito à vida e a liberdade (expressa na DAV), deve prevalecer o direito à vida. Portanto, segundo essa corrente de pensamento, a diretiva antecipada da vontade encontra seus limites quando entra em choque com a proteção à vida.
Em contrapartida, o jurista Anderson Schreiber defende que o direito à vida digna inclui também o direito à morte digna, especialmente quando esta decorre do exercício de outro direito fundamental, como a liberdade religiosa. O doutrinador argumenta que, diante de situações como a recusa de transfusão de sangue por parte de Testemunhas de Jeová, deve-se respeitar a vontade do paciente, pois essa decisão representa o exercício legítimo de sua crença religiosa.
Para Schreiber, a dignidade humana exige que se reconheça o direito de morrer conforme os valores individuais, mesmo que isso contrarie recomendações médicas. O jurista critica a imposição de tratamentos com base na suposta superioridade do direito à vida sobre a liberdade de crença, afirmando que essa hierarquização não encontra respaldo na Constituição. Destaca ainda que a priorização da vida, muitas vezes, reflete crenças da comunidade médica e não do paciente, além de ser influenciada pelo receio de sanções profissionais.
Assim, reforça que normas do Conselho Federal de Medicina não podem se sobrepor aos direitos constitucionais e que o artigo 15 do Código Civil deve ser interpretado à luz da dignidade humana e da autonomia do paciente.
Posição do Conselho Federal de Medicina
O Conselho Federal de Medicina (CFM) tratou oficialmente das diretivas antecipadas de vontade (DAV) na Resolução nº 1.995/2012, reconhecendo o direito do paciente de manifestar, de forma prévia e consciente, quais tratamentos deseja ou não deseja receber no futuro, caso esteja impossibilitado de expressar sua vontade. Essa resolução representou um marco importante, pois, até então, não havia regulamentação específica sobre o tema no Brasil.
O CFM adota como fundamento o princípio da autonomia da vontade, estabelecendo que a decisão do paciente deve prevalecer inclusive sobre opiniões de familiares ou terceiros. Essa orientação acompanha um movimento bioético internacional que valoriza a liberdade individual na tomada de decisões médicas, sobretudo em contextos de doenças graves, irreversíveis ou terminais.
Entretanto, a autonomia do paciente não é absoluta. A norma impõe limites claros:
- O médico pode recusar cumprir uma DAV que esteja em contradição com o Código de Ética Médica.
- As diretivas não podem autorizar práticas de eutanásia, expressamente proibidas no Brasil. A recusa antecipada se aplica apenas a tratamentos fúteis, desproporcionais ou que apenas prolonguem artificialmente o sofrimento.
- Em situações específicas, como durante a gestação, o CFM entende que deve prevalecer a preservação da vida do feto, mesmo que exista diretiva contrária da paciente.
RESOLUÇÃO CFM nº 1.995/2012 ARTIGOS
Art. 1º
Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Art. 2º
Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapacitados de comunicar-se ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.
§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.
§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.
§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.
§ 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.
§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou havendo falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.
Art. 3º
Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.